01 julho 2008













Rapto

Se uma águia fende os ares e arrebata
esse que é forma pura e que é suspiro
de terrenas delícias combinadas;
e se essa forma pura, degradando-se,
mais perfeita se eleva, pois atinge
a tortura do embate, no arremate
de uma exaustão suavíssima, tributo
com que se paga o voo mais cortante;
se, por amor de uma ave, ei-la recusa
o pasto natural aberto aos homens,
e pela via hermética e defesa
vai demandando o cândido alimento
que a alma faminta implora até o extremo;
se esses raptos terríveis se repetem
já nos campos e já pelas noturnas
portas de pérola dúbia das boates;
e se há no beijo estéril um soluço
esquivo e refolhado, cinza em núpcias,
e tudo é triste sob o céu flamejante
(que o pecado cristão, ora jungido
ao mistério pagão, mais o alanceia)
baixemos nosso olhos ao desígnio
da natureza ambígua e reticente:
ela tece, dobrando-lhe o amargor,
outra forma de amar no acerbo amor.


Carlos Drummond de Andrade
em Antologia Poética

1 comentário:

Anónimo disse...

O meu Drummond favorito é o Drummond do amor carnal, que tive oportunidade de dissecar numa Comunidade de Leitores da Culturgest, orientada por Maria João Seixas.