10 julho 2008

Fernando Pessoa












Vive, dizes, no presente;
Vive só no presente.

Mas eu não quero o presente, quero a realidade;
Que as coisas que existem, não o tempo que as mede.

O que é o presente?
é uma coisa relativa ao passado e ao futuro.
é uma coisa que existe em virtude de outras coisas existirem.
Eu quero só a realidade, as coisas sem presente.

Não quero incluir o tempo no meu esquema.
Não quero pensar nas coisas como presentes; quero pensar nelas como coisas.
Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes.

Eu nem por reais as devia tratar.
Eu não as devia tratar por nada.

Eu devia vê-las, apenas vê-las;
Vê-las até não poder pensar nelas,
Vê-las sem tempo, nem espaço,
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.

Passei toda a noite, sem dormir, vendo, sem espaço, a figura dela,
E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela.
Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala,
E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança.
Amar é pensar.
E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela.
Tenho uma grande distracção animada.
Quando desejo encontrá-la
Quase que prefiro não a encontrar,
Para não ter que a deixar depois.
Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero. Quero só
Pensar nela.
Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar.


em Poemas de Fernando Pessoa
Selecção de Eduardo Lourenço.

2 comentários:

Anónimo disse...

Eu ia comentar Pessoa, mas como é que é possível comentar este homem? Este poema. Só uma coisa me ocorre aqui, Pessoa é ela e ele. Admira-me, de resto, o homem/múltiplo não ter tido um heterónimo feminino. Talvez pela época em que viveu, ou teve e ainda não apareceu? Ou tem e eu desconheço? C

Anónimo disse...

Tem, pelo menos, entre os 72 "consagrados" há alguns anos, uma senhora: Maria José.