15 julho 2008

Herberto Helder










Sobre um Poema


Um poema cresce inseguramente

na confusão da carne,

sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,

talvez como sangue

ou sombra de sangue pelos canais do ser.


Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência

ou os bagos de uva de onde nascem

as raízes minúsculas do sol.

Fora, os corpos genuínos e inalteráveis

do nosso amor,

os rios, a grande paz exterior das coisas,

as folhas dormindo o silêncio,

as sementes à beira do vento,

- a hora teatral da posse.

E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.


E já nenhum poder destrói o poema.

Insustentável, único,

invade as órbitas, a face amorfa das paredes,

a miséria dos minutos,

a força sustida das coisas,

a redonda e livre harmonia do mundo.


- Em baixo o instrumento perplexo ignora

a espinha do mistério.

- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.


em Ou O Poema Contínuo

10 julho 2008

Fernando Pessoa












Vive, dizes, no presente;
Vive só no presente.

Mas eu não quero o presente, quero a realidade;
Que as coisas que existem, não o tempo que as mede.

O que é o presente?
é uma coisa relativa ao passado e ao futuro.
é uma coisa que existe em virtude de outras coisas existirem.
Eu quero só a realidade, as coisas sem presente.

Não quero incluir o tempo no meu esquema.
Não quero pensar nas coisas como presentes; quero pensar nelas como coisas.
Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes.

Eu nem por reais as devia tratar.
Eu não as devia tratar por nada.

Eu devia vê-las, apenas vê-las;
Vê-las até não poder pensar nelas,
Vê-las sem tempo, nem espaço,
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.

Passei toda a noite, sem dormir, vendo, sem espaço, a figura dela,
E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela.
Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala,
E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança.
Amar é pensar.
E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela.
Tenho uma grande distracção animada.
Quando desejo encontrá-la
Quase que prefiro não a encontrar,
Para não ter que a deixar depois.
Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero. Quero só
Pensar nela.
Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar.


em Poemas de Fernando Pessoa
Selecção de Eduardo Lourenço.
Sthéphane Mallarmé












O Túmulo de Edgar Poe

Tal que em si-mesmo enfim a Eternidade o apura
O Poeta suscita com seu gládio erguido
Seu século aterrado de não ter ouvido
Que a morte triunfava nessa voz obscura!

Eles, em sobressalto como de hidra impura
Audindo o anjo aos da tribo termos dar sentido
Puro mais, logo aclamam sortilégio haurido
Nas desonradas águas de uma atra mistura.

Opostos solo e nuvens, ó suprema dor!
Se a nossa ideia com não cria de escultor
De que a tumba de Poe se orne resplandecente,

Calmo tombado bloco de um desastre escuro,
Que este granito ao menos mostre o seu batente
Ao negro voo blasfemo esparso no futuro.


Tradução de Jorge de Sena.

08 julho 2008

William Shakespeare













Se nada há de novo e tudo quanto existe
já antes existiu, como erra o pensamento
que em inventar porfia e que iludido insiste
em dar ao já nascido segundo nascimento!
Mostrasse-me a memória, olhando para trás
do sol dos quinhentos cursos, a tua imagem dita
nalgum livro em cujas folhas ´stás
desde que a mente humana se fez palavra escrita,
para eu saber então o que os do antigo mundo
da forma milagrosa do teu vulto diziam,
se o nosso bem, se o deles, qual foi o mais fecundo,
ou se as revoluções do tempo não variam.
       E certo estou que deram engenhos do passado
       a muito pior´s temas louvor mais admirado.


em Sonetos de Shakespeare
Tradução de Vasco Graça Moura.        

06 julho 2008

Jean-Arthur Rimbaud













Being Beauteous

  Perante uma neve um Ser de Beleza de grande estatura. Silvos de morte e círculos de música surda sobem, alargam, abalam como um espectro este corpo adorado; feridas escarlates e negras rebentam nas carnes soberbas. As cores próprias da vida escurecem, dançam, soltam-se em torno da Visão, no estaleiro. E os frémitos sobem e rangem, e o ácido sabor destes fenómenos somado aos silvos mortais e às músicas roucas que o mundo, longe atrás de nós, lança sobre a nossa mãe de beleza - ela recua, ela ergue-se! Oh! um novo corpo de amor reveste os nossos ossos.

                                                     * * *

Oh o rosto de cinza, o broquel de crina, os braços de cristal! O canhão sobre o qual devo abater-me na peleja das árvores contra o ar macio!


em Iluminações
Tradução de Mário Cesariny

04 julho 2008

Eu sei que tu e eu amanhã seremos mais
uma pedra viva a terminar a torre
uma flor pulmonar abrindo vales de assombro
um diadema claro sentenciando anjos e acordos ocultos.
Não avistarei incêndios, nem vestígios de maldade
nem as liturgias mudas da voz, cinzas da nossa casa:
quando o coração cantar e o seu arder me cegar
bastar-me-á o vinho das bocas e a inocência do inacabado,
a aparência dos muros altos, o punhal sangrento
que é a solidão do outro em mim mesmo.
O mundo duplicar-se-á electricamente no peito
em peixes sedentos e luminosos
suprimindo distâncias e provas de amor lúcido,
como se os cavalos de faca que violinam cegos pelo sono
me desatassem dos braços e dos órgãos inúteis
trevas iniciais de realidade:
meu amor, meu amor, 
existirei sangrante, insatisfeito de invisível,
abrindo a morte com a língua dos nomes, 
cavando desamparado na escuridão
com a mesma lâmpada negra com que deuses
ergueram pontes aos demónios, às crianças feridas
que habitam inquietas no peito dormente da eternidade:
porque também o mal, também a flor da cinza
precisa de crescer para me salvar.


Nuno Viana

Um pequeno presente para os leitores deste blogue. Obrigado pelos vossos carinhosos comentários e emails.












Mesa dos sonhos

Ao lado do homem vou crescendo

Defendo-me da morte quando dou
Meu corpo ao seu desejo violento
E lhe devoro o corpo lentamente

Mesa dos sonhos no meu corpo vivem
Todas as formas e começam
Todas as vidas

Ao lado do homem vou crescendo
E defendo-me da morte povoando
De novos sonhos a vida.


Alexandre O´Neill
em Poesias Completas












O Poema Conciso


Porque és tão curto ? Já não amas, como noutros

Tempos, o cântico ? Nesse tempo , ainda jovem,

Quando em dias de esperança cantavas,

Nunca encontravas o fim.



Como a minha sorte, assim é minha canção. Queres-te

banhar, feliz, no pôr do Sol? Já passou! E a

Terra é fria e o pássaro da noite sibila,

Incómodo, perante os teus olhos.


Hölderlin
Tradução de Luís Costa

03 julho 2008











Os nossos sonhos são hermes de mármore
que pomos nos nossos templos
e iluminamos com as nossas grinaldas
e aquecemos com os nossos desejos.

Nossas palavras são bustos feitos de ouro
que levamos connosco para os dias, -
os deuses vivos elevam-se
na frescura de outras praias.

Estamos sempre extenuados,
quer fortes, quer em repouso,
mas temos sempre sombras radiosas
que fazem os gestos eternos.


Rainer Marie Rilke
em Poemas
Tradução de Paulo Quintela

02 julho 2008













Transforma-se o amador na cousa amada,

Por virtude do muito imaginar;

Não tenho logo mais que desejar,

Pois em mim tenho a parte desejada.


Se nela está minha alma transformada,

Que mais deseja o corpo de alcançar?

Em si sómente pode descansar,

Pois consigo tal alma está liada.


Mas esta linda e pura semideia,

Que, como o acidente em seu sujeito,

Assim co'a alma minha se conforma,


Está no pensamento como ideia;

E o vivo e puro amor de que sou feito,

Como matéria simples busca a forma.



Luís Vaz de Camões

01 julho 2008













Alturas de Macchu - Picchu

I

Do ar para o ar, como rede vazia,
ia eu entre as ruas e a atmosfera, chegando e despedindo-me,
no advento do Outono a moeda esparsa
das folhas, e entre a Primavera e as espigas,
o que o maior amor, como dentro de uma luva
que cai, nos entrega como longa lua.

(Dias de fulgor vivo na intempérie
dos corpos: aços convertidos
ao silêncio do ácido:
noites desfiadas até à última farinha:
estames agredidos da pátria nupcial.)

Alguém que me esperou entre os violinos
encontrou um mundo como torre enterrada
submergindo sua espiral mais abaixo de todas
as folhas cor de rouco enxofre:
mais abaixo, no ouro da geologia, 
como uma espada envolta em meteoros,
mergulhei a mão doce e turbulenta
no mais genital do que é terrestre.

Pousei a fronte entre as ondas profundas,
desci como gota entre a paz sulfúrica,
e, como um cego, regressei ao jasmim
da corroída Primavera humana.


Pablo Neruda
em Canto General 












Rapto

Se uma águia fende os ares e arrebata
esse que é forma pura e que é suspiro
de terrenas delícias combinadas;
e se essa forma pura, degradando-se,
mais perfeita se eleva, pois atinge
a tortura do embate, no arremate
de uma exaustão suavíssima, tributo
com que se paga o voo mais cortante;
se, por amor de uma ave, ei-la recusa
o pasto natural aberto aos homens,
e pela via hermética e defesa
vai demandando o cândido alimento
que a alma faminta implora até o extremo;
se esses raptos terríveis se repetem
já nos campos e já pelas noturnas
portas de pérola dúbia das boates;
e se há no beijo estéril um soluço
esquivo e refolhado, cinza em núpcias,
e tudo é triste sob o céu flamejante
(que o pecado cristão, ora jungido
ao mistério pagão, mais o alanceia)
baixemos nosso olhos ao desígnio
da natureza ambígua e reticente:
ela tece, dobrando-lhe o amargor,
outra forma de amar no acerbo amor.


Carlos Drummond de Andrade
em Antologia Poética









Não há outra maneira de te aproximar
da boca: quantos sóis, quantos mares
ardendo para que não fosses neve:
corpo

ancorado no verão: as aves marinhas
coroam-te a cabeça
no seu voo: inacabada música
liberta dos dedos:

luz entornada pelo dorso, na cintura,
mais doce sobre as nádegas:
para levar-te à boca, quantos mares
arderam, quantas naves.


Eugénio de Andrade
em Branco no Branco

30 junho 2008













V

O que chamamos o começo é muitas vezes o fim
E fazer um fim é fazer um começo.
O fim é de onde nós partimos. E toda a locução 
E frase que está certa (onde toda a palavra está em casa
E toma o seu lugar em apoio das outras,
A palavra nem hesitante nem aparatosa,
Uma relação fácil do velho com o novo,
A palavra comum exacta sem vulgaridade,
A palavra formal precisa mas não pedante,
A inteira companhia a dançar a compasso)
Toda a locução e frase é um fim e um começo,
Todo o poema é um epitáfio. E qualquer acto
É um passo para o cepo, para o fogo, pela garganta do mar abaixo,
Ou para uma pedra ilegível: e é daí que partimos.
Morremos com os moribundos:
Vê, eles partem e nós vamos com eles.
O momento da rosa e o momento do teixo
Têm igual duração. Um povo sem história
Não está redimido do tempo, pois a história é um padrão
de momentos sem tempo. Assim, enquanto a luz se extingue
Numa tarde de Inverno, numa capela isolada
A história é agora e a Inglaterra.
Com a atracção deste Amor e deste Chamamento

Não desistiremos de explorar
E o fim de toda a nossa exploração
Será chegarmos ao lugar de onde partimos
E conhecer o lugar pela primeira vez.
Através do portão desconhecido e lembrado
Quando o último confim da terra por descobrir
For o lugar que foi o começo;
Na nascente do rio mais longo
A voz da oculta queda-d´água
E as crianças na macieira
Desconhecidas, porque não procuradas
Mas ouvidas, meio-ouvidas, na quietação
Entre duas ondas do mar.
Depressa agora, aqui, agora, sempre-
Uma condição de completa simplicidade
(Que não custa menos do que tudo)
E tudo há-de ficar bem e
Toda a espécie de coisa há-de ficar bem
Quando as línguas de fogo refluírem 
Para o coroado nó de fogo
E o fogo e a rosa forem um.


T.S.Eliot
em Quatro Quartetos
tradução de Gualter Cunha

29 junho 2008













Se tanto me dói que as coisas passem

É porque cada instante em mim foi vivo

Na busca de um bem definitivo

Em que as coisas do Amor se eternizassem.


Sophia de Mello Breyner Andresen













Certa voz na noite, ruivamente

Esquivo sortilégio o dessa voz, opiada
Em sons cor de amaranto, às noites de incerteza,
Que eu lembro não sei de onde - a voz de uma Princesa
Bailando meia nua entre clarões de Espada.

Leonina, ela arremessa a carne arroxeada;
E bêbada de Si, arfante de Beleza, 
Acera os seios nus, descobre o sexo... Reza
O espasmo que a estrebucha em Alma copulada...

Enquanto nunca a vi mesmo em visão. Somente
A sua voz, a fulcra ao meu lembrar-me. Assim 
Não lhe desejo a carne - a carne inexistente...

É só de voz-em-cio a bailarina astral - 
E nessa voz-Estátua, ah! nessa voz total,
É que eu sonho esvair-me em vícios de marfim...


Mário de Sá-Carneiro
Lisboa, 31 de Janeiro de 1914
em Poesia Completa












A Angústia

Nada em ti me comove, Natureza, nem 
Faustos das madrugadas, nem campos fecundos,
Nem pastorais do Sul, com o seu eco tão rubro,
A solene dolência dos poentes, além.

Eu rio-me da Arte, do Homem, das canções,
Da poesia, dos templos e das espirais
Lançadas para o céu vazio pelas catedrais.
Vejo com os mesmos olhos os maus e os bons.

Não creio em Deus, abjuro e renego qualquer
Pensamento, e nem posso ouvir sequer falar
Dessa velha ironia a que chamam Amor.

Já farta de existir, com medo de morrer,
Como um brigue perdido entre as ondas do mar,
A minha alma persegue um naufrágio maior.


Paul Verlaine
em Poemas Saturnianos e Outros
Tradução de Fernando Pinto do Amaral












Não penses, meu amor, que no meu seio guardo
o tumultar do sangue, o frenesim de que ardo,
os uivos dela, os gritos de bacante em cio,
quando, como uma cobra, sob mim se torce, 
e em beijos que remordem e na carícia urgente
vem o estertor final da consumada posse.

Mais doce és tu, amor, tão sossegada e calma - 
pelo prazer dorido com que eu sou todo alma
quando, após longamente suplicar-te ansioso,
com pudica modéstia cedes ao meu gozo
e a mim te dás enfim, mas desviando o olhar,
aos meus ardores tão fria e sem me ouvires falar,
mas despertando...ah quão tu devagar despertas...
até que, a contragosto, o meu prazer é o teu.


Pushkin
Tradução de Jorge de Sena

28 junho 2008













A mão ao assinar este papel

A mão ao assinar este papel arrasou uma cidade;
cinco dedos soberanos lançaram a sua taxa sobre a respiração;
duplicaram o globo dos mortos e reduziram a metade um país;
estes cinco reis levaram a morte a um rei.

A mão soberana chega até um ombro descaído
e as articulações dos dedos ficaram imobilizadas pelo gesso;
uma pena de ganso serviu para pôr fim à morte
que pôs fim às palavras.

A mão ao assinar o tratado fez nascer a febre,
e cresceu a fome, e todas as pragas vieram;
maior se torna a mão que estende o seu domínio
sobre o homem por ter escrito um nome.

Os cinco reis contam os mortos mas não acalmam
a ferida que está cicatrizada, nem acariciam a fronte;
há mãos que governam a piedade como outras o céu;
mas nenhuma delas tem lágrimas para derramar.


Dylan Thomas
em A mão ao assinar este papel
Tradução de Fernando Guimarães












Terá a manhã sempre que voltar? Não terminará jamais o poder da Terra? Agitação nefasta consome o celeste poisar das asas da Noite. Jamais ficará a arder sem fim a secreta oferenda do amor? O tempo da Luz é mensurável; mas o império da Noite é sem tempo e sem espaço. - Perene é a duração do sono. Sagrado sono, não sejas avaro de teus benefícios para todos os que nesta jornada terrena se consagram à Noite. Só os loucos te desconhecem, não sabendo de outro sono que a sombra que tu misericordiosamente sobre nós lanças no crepúsculo desta vera Noite. Eles não te sentem no dourado caudal das uvas - na maravilha do óleo de amêndoas, no suco escuro da papoila. Não sabem que és tu que pairando no contorno dos seios das tenras donzelas tornas o seu regaço o Céu - não supõem que tu, vindo de histórias antiquíssimas ao nosso encontro, vens para abrires o Céu e trazeres contigo as chaves das moradas dos bem- aventurados, mensageiro silente de infindáveis segredos.


Novalis
em Hinos à Noite
tradução de Fiama Hasse Pais Brandão

27 junho 2008













O Retrato, a Energia

É horrível dizer-to
Mas desses teus olhos grandes febris e ternos
Dessa boca onde meu coração tanto se perdeu
Desses beijos tão imperiosos como mandamentos
Desses transportes que a luz nos invejava
Resta apenas um esboço esbatido
A três cores
Que como eu agoniza sozinho sem rosto
E que o tempo, um velho malcriado,
Amarrota um pouco mais todos os dias com sua asa rude

A entropia
Transformou em cinzas
Todas as chamas em que ardíamos

Mas eu aviso-te ó assassina da vida e da arte
Nunca conseguirás apagar da minha memória
Aquela que foi meu prazer e minha glória


Charles Baudelaire
em As Flores do Mal
tradução de Maria Gabriela Llansol










Devo ser o último tempo
A chuva definitiva sobre o último animal nos pastos
O cadáver onde a aranha decide o círculo.
Devo ser o último degrau na escada de Jacob
E o último sonho nele
Devo ser-lhe a última dor no quadril.
Devo ser o mendigo à minha porta
E a casa posta à venda.
Devo ser o chão que me recebe
E a árvore que me planta.
Em silêncio e devagar no escuro
Devo ser a véspera. Devo ser o sal
Voltado para trás.
Ou a pergunta na hora de partir.


Daniel Faria
em A Explicação das Árvores e dos Outros Animais











Ite, rime dolenti, al duro sasso

Oh, vai, verso dolente, à pedra dura
Que o meu caro tesouro em terra esconde,
E chama quem do céu inda responde,
Se bem que o corpo esteja em tumba escura.

Diz-lhe que vivo exausto de amargura,
De navegar sem já saber por onde,
Salvando apenas sua esparsa fronde
De perder-se na morte que se apura,
Sempre arrazoando dela, viva e morta,
Como se viva e já feita imortal,
Para que o mundo a reconheça e ame.

E que lhe praza ser quem me conforta
No instante que se apressa. Venha e, qual
Está no céu, a si me leve e chame.



Petrarca
tradução de Jorge de Sena

26 junho 2008













1910
(Intermédio)

Aqueles meus olhos de mil novecentos e dez
não viram enterrar os mortos,
nem a feira de cinza do que chora de madrugada,
nem o coração que treme retirado como um hipocampo.

Aqueles meus olhos de mil novecentos e dez
viram a branca parede onde urinavam as meninas,
o focinho do touro, o cogumelo venenoso
e uma lua incompreensível que iluminava nos recantos
os pedaços de limão seco sob o negro duro das garrafas.

Aqueles meus olhos no pescoço do garrano,
no seio vazado de Santa Rosa adormecida,
nos telhados de amor, com gemidos e frescas mãos,
num jardim onde os gatos comiam as rãs.

Sótão onde o velho pó reúne estátuas e musgos.
Caixões que guardam silêncio de caranguejos devorados.
No sítio onde o sonho tropeçava na realidade.
Ali meus pequenos olhos.

Não me perguntem nada. Vi que as coisas
quando buscam seu curso encontram seu vazio.
Há uma dor de ocos pelo espaço sem ninguém
e, em meus olhos, criaturas vestidas - mas sem corpo!


Federico García Lorca
em Poeta em Nova Iorque
tradução de José Bento.












O Rochedo

A nuvem de ouro dorme a noite inteira
no seio do gigântico rochedo.
Pela manhã, levanta-se bem cedo,
e descuidada vai-se pelos céus, ligeira.

Mas lá restou do orvalho um breve traço
nas rugas do penedo solitário.
E é como se ele ficara multivário
chorando suavemente ante o vazio espaço.


Lermontov
tradução de Jorge de Sena












Trevas

Eu tive um sonho que não era em tudo um sonho
O sol esplêndido extinguira-se, e as estrelas
Vaguejavam escuras pelo espaço eterno,
Sem raios nem roteiro, e a enregelada terra
Girava cega e negrejante no ar sem lua;
Veio e foi-se a manhã - veio e não trouxe o dia;
E os homens esqueceram as paixões, no horror
Dessa desolação; e os corações esfriaram
Numa prece egoísta que implorava luz:
E eles viviam ao redor do fogo; e os tronos,
Os palácios dos reis coroados, as cabanas,
As moradas, enfim, do gênero que fosse,
Em chamas davam luz; cidades consumiam-se
E os homens se juntavam juntos às casas ígneas
Para ainda uma vez olhar o rosto um do outro;
Felizes quanto residiam bem à vista
dos vulcões e de sua tocha montanhosa;
Expectativa apavorada era a do mundo;
queimavam-se as floresta - mas de hora em hora
Tombavam, desfaziam-se - e, estralando, os troncos
Findavam num estrondo - e tudo era negror.
À luz desesperante a fronte dos humanos
Tinha um aspecto não terreno, se espasmódicos
Neles batiam os clarões; alguns, por terra,
Escondiam chorando os olhos,; apoiavam
Outros o queixo às mãos fechadas, e sorriam;
Muitos corriam para cá e para lá,
Alimentando a pira, e a vista levantavam
Com doida inquietação para o trevoso céu
A mortalha de um mundo extinto; e então de novo
Com maldições olhavam a poeira, e uivavam,
Rangendo os dentes; e aves bravas davam gritos
E cheias de terror voejavam junto ao solo,
Batendo asas inúteis; as mais rudes feras
Chegavam mansas e a tremer; rojavam víboras,
E entrelaçavam-se por entre a multidão,
Silvando, mas sem presas - e eram devoradas.
E fartava-se a Guerra que cessara um tempo,
E qualquer refeição comprava-se com sangue;
E cada um sentava-se isolado e torvo,
Empanturrando-se no escuro; o amor findara;
A terra era uma idéia só - e era a de morte
Imediata e inglória; e se cevava o mal
Da fome em todas as entranhas; e morriam
Os homens, insepultos sua carne e ossos;
Os magros pelos magros eram devorados,
Os cães salteavam os seus donos, exceto um,
Que se mantinha fiel a um corpo, e conservava
Em guarda as bestas e aves e os famintos homens,
Até a fome os levar, ou os que caíam mortos
Atraírem seus dentes; ele não comia,
Mas com um gemido comovente e longo, e um grito
Rápido e desolado, e relambendo a mão
Que já não o agradava em paga - ele morreu.
Finou-se a multidão de fome, aos poucos; dois,
Porém, de uma cidade enorme resistiram,
Dois inimigos, que vieram encontrar-se
Junto às brasas agonizantes de um altar
Onde se haviam empilhado coisas santas
Para um uso profano; eles as revolveram
E trêmulos rasparam, com as mão esqueléticas,
As débeis cinzas, e com um débil assoprar
Para viver um nada, ergueram uma chama
Que não passava de um arremedo; então alcançaram
Os olhos quando ela se fez mais viva, e espiaram
O rosto um do outro - ao ver, gritaram e morreram
- Morreram de sua própria e mútua hediondez,
Sem um reconhecer o outro em cuja fronte
Grafara a fome "diabo". O mundo se esvaziara,
O populoso e forte era um informe massa,
Sem estações nem árvore, erva, homem, vida,
Massa informe de morte - um caos de argila dura.
Pararam lagos, rios, oceanos: nada
Mexia em suas profundezas silenciosas;
Sem marujos, no mar as naus apodreciam,
Caindo os mastros aos pedaços; e, ao caírem,
Dormiam nos abismos sem fazer mareta,
Mortas as ondas, e as marés na sepultura,
Que já findara sua lua senhoril.
Os ventos feneceram no ar inerte, e as nuvens
Tiveram fim; a Escuridão não precisava
De seu auxílio - as Trevas eram o Universo.

Lord Byron
em As Trevas e Outros Poemas












Muriel
Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas a dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
Numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho da manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou
Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid
havia as ruas as pessoas o anonimato
os bares os cinemas os museus
um dia vi-te e desde então madrid
se porventura tem ainda para mim sentido
é ser solidão que te rodeia a ti
Mas o preço que pago por te ter
é ter-te apenas quanto poder ver-te
e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te
Sou muito pobre tenho só por mim
no meio destas ruas e do pão e dos jornais
este sol de Janeiro e alguns amigos mais
Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te
Eu aprendi a ver a minha infância
vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweet hunters
que esta noite vi no cinema rosales
Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
E penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não
Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido
No fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serrano
sensivelmente em frente daquele bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros
Talvez pensasse que naqueles encontros
em que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes
Isso era por exemplo o que me acontecia
quando há anos nas manhãs de roma
entre os pinheiros ainda indecisos
do meu perdido parque de villa borghese
eu via essa mulher e esse homem
que naqueles encontros pontuais
Decerto não seriam tão felizes como neles eu
pois a felicidade para nós possível
é sempre a que sonhamos que há nos outros
Até que certo dia não sei bem
Ou não passei por lá ou eles não foram
nunca mais foram nunca mais passei por lá
Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se madrid existiu
Se portanto chegares tu primeiro porventura
alguma vez daqui a alguns anos
junto de califórnia vinte e um
que não te admires se olhares e me não vires
Estarei longe talvez tenha envelhecido
Terei até talvez mesmo morrido
Não te deixes ficar sequer à minha espera
não telefones não marques o número
ele terá mudado a casa será outra
Nada penses ou faças vai-te embora
tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templos
e que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão de escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda
Dizia que ao chegar se olhares e não me vires
nada penses ou faças vai-te embora
eu não te faço falta e não tem sentido
esperares por quem talvez tenha morrido
ou nem sequer talvez tenha existido

Ruy Belo

em Toda a Terra