15 julho 2008

Herberto Helder










Sobre um Poema


Um poema cresce inseguramente

na confusão da carne,

sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,

talvez como sangue

ou sombra de sangue pelos canais do ser.


Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência

ou os bagos de uva de onde nascem

as raízes minúsculas do sol.

Fora, os corpos genuínos e inalteráveis

do nosso amor,

os rios, a grande paz exterior das coisas,

as folhas dormindo o silêncio,

as sementes à beira do vento,

- a hora teatral da posse.

E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.


E já nenhum poder destrói o poema.

Insustentável, único,

invade as órbitas, a face amorfa das paredes,

a miséria dos minutos,

a força sustida das coisas,

a redonda e livre harmonia do mundo.


- Em baixo o instrumento perplexo ignora

a espinha do mistério.

- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.


em Ou O Poema Contínuo

10 julho 2008

Fernando Pessoa












Vive, dizes, no presente;
Vive só no presente.

Mas eu não quero o presente, quero a realidade;
Que as coisas que existem, não o tempo que as mede.

O que é o presente?
é uma coisa relativa ao passado e ao futuro.
é uma coisa que existe em virtude de outras coisas existirem.
Eu quero só a realidade, as coisas sem presente.

Não quero incluir o tempo no meu esquema.
Não quero pensar nas coisas como presentes; quero pensar nelas como coisas.
Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes.

Eu nem por reais as devia tratar.
Eu não as devia tratar por nada.

Eu devia vê-las, apenas vê-las;
Vê-las até não poder pensar nelas,
Vê-las sem tempo, nem espaço,
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.

Passei toda a noite, sem dormir, vendo, sem espaço, a figura dela,
E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela.
Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala,
E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança.
Amar é pensar.
E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela.
Tenho uma grande distracção animada.
Quando desejo encontrá-la
Quase que prefiro não a encontrar,
Para não ter que a deixar depois.
Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero. Quero só
Pensar nela.
Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar.


em Poemas de Fernando Pessoa
Selecção de Eduardo Lourenço.
Sthéphane Mallarmé












O Túmulo de Edgar Poe

Tal que em si-mesmo enfim a Eternidade o apura
O Poeta suscita com seu gládio erguido
Seu século aterrado de não ter ouvido
Que a morte triunfava nessa voz obscura!

Eles, em sobressalto como de hidra impura
Audindo o anjo aos da tribo termos dar sentido
Puro mais, logo aclamam sortilégio haurido
Nas desonradas águas de uma atra mistura.

Opostos solo e nuvens, ó suprema dor!
Se a nossa ideia com não cria de escultor
De que a tumba de Poe se orne resplandecente,

Calmo tombado bloco de um desastre escuro,
Que este granito ao menos mostre o seu batente
Ao negro voo blasfemo esparso no futuro.


Tradução de Jorge de Sena.

08 julho 2008

William Shakespeare













Se nada há de novo e tudo quanto existe
já antes existiu, como erra o pensamento
que em inventar porfia e que iludido insiste
em dar ao já nascido segundo nascimento!
Mostrasse-me a memória, olhando para trás
do sol dos quinhentos cursos, a tua imagem dita
nalgum livro em cujas folhas ´stás
desde que a mente humana se fez palavra escrita,
para eu saber então o que os do antigo mundo
da forma milagrosa do teu vulto diziam,
se o nosso bem, se o deles, qual foi o mais fecundo,
ou se as revoluções do tempo não variam.
       E certo estou que deram engenhos do passado
       a muito pior´s temas louvor mais admirado.


em Sonetos de Shakespeare
Tradução de Vasco Graça Moura.        

06 julho 2008

Jean-Arthur Rimbaud













Being Beauteous

  Perante uma neve um Ser de Beleza de grande estatura. Silvos de morte e círculos de música surda sobem, alargam, abalam como um espectro este corpo adorado; feridas escarlates e negras rebentam nas carnes soberbas. As cores próprias da vida escurecem, dançam, soltam-se em torno da Visão, no estaleiro. E os frémitos sobem e rangem, e o ácido sabor destes fenómenos somado aos silvos mortais e às músicas roucas que o mundo, longe atrás de nós, lança sobre a nossa mãe de beleza - ela recua, ela ergue-se! Oh! um novo corpo de amor reveste os nossos ossos.

                                                     * * *

Oh o rosto de cinza, o broquel de crina, os braços de cristal! O canhão sobre o qual devo abater-me na peleja das árvores contra o ar macio!


em Iluminações
Tradução de Mário Cesariny

04 julho 2008

Eu sei que tu e eu amanhã seremos mais
uma pedra viva a terminar a torre
uma flor pulmonar abrindo vales de assombro
um diadema claro sentenciando anjos e acordos ocultos.
Não avistarei incêndios, nem vestígios de maldade
nem as liturgias mudas da voz, cinzas da nossa casa:
quando o coração cantar e o seu arder me cegar
bastar-me-á o vinho das bocas e a inocência do inacabado,
a aparência dos muros altos, o punhal sangrento
que é a solidão do outro em mim mesmo.
O mundo duplicar-se-á electricamente no peito
em peixes sedentos e luminosos
suprimindo distâncias e provas de amor lúcido,
como se os cavalos de faca que violinam cegos pelo sono
me desatassem dos braços e dos órgãos inúteis
trevas iniciais de realidade:
meu amor, meu amor, 
existirei sangrante, insatisfeito de invisível,
abrindo a morte com a língua dos nomes, 
cavando desamparado na escuridão
com a mesma lâmpada negra com que deuses
ergueram pontes aos demónios, às crianças feridas
que habitam inquietas no peito dormente da eternidade:
porque também o mal, também a flor da cinza
precisa de crescer para me salvar.


Nuno Viana

Um pequeno presente para os leitores deste blogue. Obrigado pelos vossos carinhosos comentários e emails.












Mesa dos sonhos

Ao lado do homem vou crescendo

Defendo-me da morte quando dou
Meu corpo ao seu desejo violento
E lhe devoro o corpo lentamente

Mesa dos sonhos no meu corpo vivem
Todas as formas e começam
Todas as vidas

Ao lado do homem vou crescendo
E defendo-me da morte povoando
De novos sonhos a vida.


Alexandre O´Neill
em Poesias Completas












O Poema Conciso


Porque és tão curto ? Já não amas, como noutros

Tempos, o cântico ? Nesse tempo , ainda jovem,

Quando em dias de esperança cantavas,

Nunca encontravas o fim.



Como a minha sorte, assim é minha canção. Queres-te

banhar, feliz, no pôr do Sol? Já passou! E a

Terra é fria e o pássaro da noite sibila,

Incómodo, perante os teus olhos.


Hölderlin
Tradução de Luís Costa

03 julho 2008











Os nossos sonhos são hermes de mármore
que pomos nos nossos templos
e iluminamos com as nossas grinaldas
e aquecemos com os nossos desejos.

Nossas palavras são bustos feitos de ouro
que levamos connosco para os dias, -
os deuses vivos elevam-se
na frescura de outras praias.

Estamos sempre extenuados,
quer fortes, quer em repouso,
mas temos sempre sombras radiosas
que fazem os gestos eternos.


Rainer Marie Rilke
em Poemas
Tradução de Paulo Quintela

02 julho 2008













Transforma-se o amador na cousa amada,

Por virtude do muito imaginar;

Não tenho logo mais que desejar,

Pois em mim tenho a parte desejada.


Se nela está minha alma transformada,

Que mais deseja o corpo de alcançar?

Em si sómente pode descansar,

Pois consigo tal alma está liada.


Mas esta linda e pura semideia,

Que, como o acidente em seu sujeito,

Assim co'a alma minha se conforma,


Está no pensamento como ideia;

E o vivo e puro amor de que sou feito,

Como matéria simples busca a forma.



Luís Vaz de Camões

01 julho 2008













Alturas de Macchu - Picchu

I

Do ar para o ar, como rede vazia,
ia eu entre as ruas e a atmosfera, chegando e despedindo-me,
no advento do Outono a moeda esparsa
das folhas, e entre a Primavera e as espigas,
o que o maior amor, como dentro de uma luva
que cai, nos entrega como longa lua.

(Dias de fulgor vivo na intempérie
dos corpos: aços convertidos
ao silêncio do ácido:
noites desfiadas até à última farinha:
estames agredidos da pátria nupcial.)

Alguém que me esperou entre os violinos
encontrou um mundo como torre enterrada
submergindo sua espiral mais abaixo de todas
as folhas cor de rouco enxofre:
mais abaixo, no ouro da geologia, 
como uma espada envolta em meteoros,
mergulhei a mão doce e turbulenta
no mais genital do que é terrestre.

Pousei a fronte entre as ondas profundas,
desci como gota entre a paz sulfúrica,
e, como um cego, regressei ao jasmim
da corroída Primavera humana.


Pablo Neruda
em Canto General 












Rapto

Se uma águia fende os ares e arrebata
esse que é forma pura e que é suspiro
de terrenas delícias combinadas;
e se essa forma pura, degradando-se,
mais perfeita se eleva, pois atinge
a tortura do embate, no arremate
de uma exaustão suavíssima, tributo
com que se paga o voo mais cortante;
se, por amor de uma ave, ei-la recusa
o pasto natural aberto aos homens,
e pela via hermética e defesa
vai demandando o cândido alimento
que a alma faminta implora até o extremo;
se esses raptos terríveis se repetem
já nos campos e já pelas noturnas
portas de pérola dúbia das boates;
e se há no beijo estéril um soluço
esquivo e refolhado, cinza em núpcias,
e tudo é triste sob o céu flamejante
(que o pecado cristão, ora jungido
ao mistério pagão, mais o alanceia)
baixemos nosso olhos ao desígnio
da natureza ambígua e reticente:
ela tece, dobrando-lhe o amargor,
outra forma de amar no acerbo amor.


Carlos Drummond de Andrade
em Antologia Poética









Não há outra maneira de te aproximar
da boca: quantos sóis, quantos mares
ardendo para que não fosses neve:
corpo

ancorado no verão: as aves marinhas
coroam-te a cabeça
no seu voo: inacabada música
liberta dos dedos:

luz entornada pelo dorso, na cintura,
mais doce sobre as nádegas:
para levar-te à boca, quantos mares
arderam, quantas naves.


Eugénio de Andrade
em Branco no Branco